Carta aberta de um coração sacerdotal
A esperança para o mundo em que vivemos

Quando olho ao meu redor e vejo os fiéis na paróquia; quando vejo vocês correndo com os filhos, com os netos; quando vejo vocês saindo de casa pela manhã para o trabalho; quando vejo vocês, pelas estradas, retornarem para casa, cansados do peso do dia com suas responsabilidades; quando vejo vocês preocupados com a vida, com medo da violência, inseguros do futuro, tristes pela dor e o sofrimento; quando vejo vocês empenhados em construir uma família feliz, uma sociedade justa, um mundo melhor, quando vejo vocês homens e mulheres, moços e moças, crianças e idosos... me pergunto: se Jesus vivesse aqui, no hoje, no meio das fadigas cotidianas da vida, o que diria?

Como contaria as parábolas? Em vez de ovelhas, usaria cachorros, gatos, passarinhos...;

Em vez de publicanos, escribas ou fariseus, usaria políticos, pastores ou padres;

Em vez de dracmas e talentos, usaria dólar e euro. E assim seguiria.

Mas, certamente algumas coisas continuariam, ainda que passados mais de dois mil anos. Estes podem ser alguns exemplos: o filho que sai de casa em busca de aventura; a prostituta em flagrante; o homem assaltado e espancado na beira do caminho. Estas e outras situações conhecemos e vemos ainda hoje, no nosso dia-a-dia.

E os milagres? Como Jesus os faria numa época em que não se crê mais?

Sim, a ciência pode analisar e explicar os milagres de cura, de expulsão de demônios, de espíritos impuros, etc., realizados por Jesus. Pode até afirmar que a ressurreição é um mito. Certo! A ciência é um instrumento de investigação sério e competente que tem o seu respeito e autoridade quando se pronuncia. Digo isto, pois, também, quero valorizar os meus anos de estudos, em particular a teologia! Que bom seria quando elas, toda juntas, de mãos dadas e com razão aguçada, colocassem-se a serviço da verdade. Talvez utópico de minha parte, mas consciente da sua necessidade: a física, a filosofia, a economia, a biologia, a antropologia, a sociologia, a medicina, a psicologia, a comunicação social, o direito,... a teologia, todos atraídos pela verdade; aquela verdade da dignidade do ser humano e do bem comum.

Olhando ao meu redor vejo, também, a dor de uma mãe que perde o seu filho, vítima da violência de autoridades a serviço da ordem, da justiça e da segurança; vejo jovens que sem oportunidades de estudo e espaço no mercado de trabalho se prostituem, se drogam, roubam, choram e, depois, são esquecidos atrás de grades; vejo famílias que se perdem por falta de apoio seja de ordem política ou religiosa; vejo índios, particularmente crianças que nem falam português, pedindo alimentos nas casas e esmolas nas ruas da cidade; vejo cristãos que vivem disputando Jesus Cristo – o que é pior, usando a Palavra de Deus para isto – negando o amor e a comunhão pregado e vivido por ele;  vejo pacientes em filas desesperançosas para uma consulta médica e outros pacientes sobre macas esperando a misericórdia de Deus; vejo sofrimentos, sociais, físicos, morais e psicológicos que Jesus já os presenciava no seu tempo.

Pode ser que não se creia mais em milagres; pode sim. Mas, o que não pode, é deixar de olhar, face a face, o mal que sempre encontra novas maneiras para tornar-se presente!

Isto não é o fim. É apenas o desafio que continua no mundo de hoje! É o começo para um futuro que apresenta um novo presente para mim, pra você e pra todos os seres humanos.

Este é o nosso tempo. O tempo dos cristãos, discípulos e missionários de Jesus Cristo!

O mundo, creio, tem necessidade de Cristo, pois a humanidade continua humana!

É justamente para esta humanidade que Jesus Cristo revelou o amor de Deus e por ela entregou a sua vida. E é para isto que minha vida tem sentido, se quero ser sacerdote de Jesus Cristo!

Agora, pergunto a você: o mundo, ainda, tem necessidade de Jesus Cristo? Parece uma pergunta banal! Novamente eu digo: creio que sim. Seria o mesmo de perguntar se o mundo tem necessidade de amor; se a humanidade tem necessidade de esperança; se os corações humanos têm necessidade de sentirem-se amados;... Confiar que, para além da situação de nosso tempo, Deus vela por nós e nos promete que a vida vence e triunfa para sempre. Por isso creio que o mundo necessita de Jesus Cristo.

Ainda, pergunto a mim e a você: por que depois de mais de dois mil anos se continua falando desse ‘personagem’ Jesus? Chego a esta resposta: porque ele é formidável – isto já dizia Paulo VI em seus discursos – esplêndido, fantástico no seu modo de amar. Resposta simples, porque todos nós somos necessitados do amor.

Nisto vejo e experimento o amor formidável de Jesus Cristo para conosco! Posso ler, meditar, rezar, contemplar e praticar este amor, que diz: “eu te amo”! Deus ama tanto a gente que entrega o seu Filho unigênito (Jo 3,16); propõe que amemos uns aos outros, como ele amou a nós – o amor da cruz – (Jo 13,34). Por esta gente é que me consagro (Jo 17,19), para que a minha alegria esteja em cada coração; em cada família, em cada nação, em cada vida (Jo 17,13), diz Jesus.

Se compreendêssemos de verdade, sem mesquinhez; se pensássemos seriamente nisto e em suas conseqüências... mudaríamos todo o mundo, começando a partir de mim mesmo! Deus amou o mundo: você, eu, teus filhos, tua família, teus amigos... a humanidade, a ponto de pisar nosso chão, aceitar a nossa condição humana e suas leis naturais e sociais, de submeter-se aos nossos juízos,... de morrer como malfeitor, injustamente. Amou até a morte! Deus ama assim, totalmente. Será que pensamos, de verdade, nisto?

Creio que esta é a Palavra de Deus: “Deus é amor” (1Jo 4,16). Jesus Cristo é a Palavra com qual Deus fala “eu te amo”! Deus falou e tudo foi criado (Gn 1,3ss); a sua criação Deus a amou de tantos modos: na libertação da escravidão no Egito; no maná caído do céu para alimentar o seu povo; mandamentos dados por Moises; nos profetas e patriarcas... Por fim, Deus fala e ama a nós pelo seu Filho (Hb 1,1-2).

Estou escrevendo isto como sacerdote. Sim, eu sou sacerdote! Sou padre, por causa desse Jesus e por causa deste mundo. “Sou um sacerdote católico”, repetindo as últimas palavras de São Maximiliano Kolbe, quando no campo de concentração de Auschiwitz – 1941 –, entrega a sua vida no lugar de um outro: um prisioneiro desconhecido, um sargento polonês, um pai de família.

Continuo escrevendo, partindo de outra pergunta: o que faz, da vida, um sacerdote?

Muitos de vocês podem responder: ‘reza’! Sim, certamente. É o que se espera, no mínimo! Mas rezar não seria uma ação para todos os cristãos? Não seria para qualquer um que crê em Deus ou que pertença a qualquer religião?

Outros podem responder de modo banal: ‘padres não fazem nada’! Esta resposta me faz rir. É estranho que a atenção e o serviço aos outros, a educação e a construção da comunidade, a confissão, a missa, o batismo, a benção para um falecido e a oração por seus familiares, a unção a um enfermo e a presença no momento de dor e sofrimento, trabalhar para a evangelização e a conversão dos corações distantes do amor de Deus e da convivência fraterna... tudo isto, corresponda a ‘nada’!

A assistência humana e espiritual não são nada? Não têm valor? Talvez se pense que o sacerdote nada faz porque se esquece de quanto seja importante a interioridade humana e a espiritualidade, enquanto abertura e caminhão com Deus.

Se pensa e se preocupa com a exterioridade: a saúde e a estética do corpo. Isto é justo e precisa ser considerado algo sério, pois é vida é dom de Deus. Mas e o interior do ser humano? O seu coração com os seus anseios mais profundos? Qual a importância? Às vezes desejamos formas e músculos definidos. Esquecemos de educar o coração e instruir a consciência para a retidão. Lembro que, ao criar o ser humano, Deus o criou na sua integridade, totalidade, completude humana-espiritual.

Reconheço, diante desta reposta, que o “sacerdote não faz nada”, uma responsabilidade minha pessoal: talvez não consiga dizer, pregar ou expressar pelo meu testemunho o quanto seja importante sua vida e o seu ministério sacerdotal.

Então, coloco-me uma pergunta a mim mesmo: o que deve fazer – ou está fazendo – um padre para que entendam o seu ministério? A resposta, de um certo ponto, é simples: anunciar Jesus Cristo como salvação dos homens e esperança para o mundo.

O padre tem dois amores que o norteiam: amor de Deus e o amor pela humanidade. Quando deixa um destes dois amores, deixa, então de ser padre. É como uma tesoura com um fio só. Não tem existência, por isso, não tem finalidade!

Pode até parecer pretensioso isto que estou afirmando. Sei, também, por minha culpa – nossa culpa – que, pela fragilidade humana, a afirmação do amor a Deus e a humanidade é pouco credível... Porém, é o forte desejo do meu coração e a busca sincera em viver o amor naquilo que faço e sou. Eis o meu trabalho! Na minha experiência este desejo e esta busca são os trabalhos mais empenhativos da vida. Ah que trabalho! E, ainda, parece ser o trabalho que não me dá férias nem folgas, ademais é o trabalho de toda vida.

Qual é o trabalho do padre? Dizer na pregação e pregar no testemunho de vida, com alegria sincera e discreta, este amor de Deus para conosco e o meu amor pela humanidade. Por isso sou padre! Só por isso, caso seja pouco! Por ser padre é que, então, celebro a missa. Nesta torno presente – aqui e agora –, pela memória eucarística, o amor de Jesus que oferece o seu próprio corpo e sangue, dando-se inteira e gratuitamente a nós. Por ser padre confesso, dispensando assim, a quem necessita e deseja, a misericórdia  de Deus; expressando, assim, o perdão de Deus aos homens e mulheres sem condições. Por ser padre celebro batismos, matrimônios... funerais. Parece um paradoxo! Não. Apenas porque onde a vida do ser humano chega a um ponto importante, decisivo e determinante – do nascimento à morte – o amor de Deus se pronuncia; se faz presente!

O trabalho do padre – o meu trabalho – é dizer que a Palavra de Deus está a favor do homem. Palavra esta escrita pelo homem, a partir da sua experiência de Deus. É também para ele tal Palavra, para que por ela, faça a sua experiência de Deus na própria vida. Meu trabalho é dizer que o futuro nos pertence, porque este pertence a Deus, e ele no seu amor, tudo criou ao nosso dispor.

Meu trabalho é dizer, anunciar, cantar, testemunhar... que tem esperança; você é esperança; o mundo é a sua própria esperança, porque você é pessoa de esperança, isto é, alguém que espera no amor de Deus para com toda a humanidade. O verbo ‘esperar’ é ativo – em movimento – para fazer acontecer o amor a partir de Deus.

João Paulo II, em algum momento da história, disse: “não tenham medo!” Eu digo agora: tenham esperança! Isto mesmo, pois, tem esperança onde termina o medo; onde termina o medo, começa a ação no amor de Deus, como Jesus, na força do Espírito Santo.

Compreender o amor de Deus em nossos dias que estão permeados de fadigas, incompreensões, decepções, incertezas, angústias, alegrias disfarçadas...; compreender isso diante das crises e desolações; compreender isso quando o amor desaparecer de nossa vida e caminho...; compreender que a vida vence e que o amor é mais forte que a morte... Compreender esse amor que está imerso dentro dessa realidade de nosso tempo... Compreender esse amor assim, é compreender o cristianismo. Esta é a formidável novidade do anúncio cristão: isto é o evangelho atual de Jesus Cristo.

Novamente digo: por isso sou padre! Quero repetir, de modo atualizado, este anúncio; quero abençoar aqueles que compreendem esse amor e aqueles que não; quero rezo por aqueles que amam os sacerdotes e por aqueles que não. Assim é que trabalho: amando aqueles que estão mais próximos; os distantes, confiando-os a grandeza de Deus.

O meu trabalho, enquanto ministério sacerdotal é rezar, amar, abençoar, educar, unir santificar e morrer por causa desta causa: ser padre. O meu ministério é tudo isto, primeiro para mim mesmo. Por isto digo: sou um padre feliz.

Esta vida eu a vivo no coração da Mãe de Deus e nossa; a ela consagrei a vida enquanto homem; a vocação enquanto consagrado; o ministério enquanto sacerdote. Sou dela para ser todo de Deus!

Esta carta é a minha experiência no encerramento do ano sacerdotal. Peço a você leitor que reze por nós sacerdotes. Amem-nos em nossa fragilidade humana e exija-nos um bonito ministério.

Minha benção
a você, a tua família, a tua casa, a tua necessidade...

Deus misericordioso e providente, que nos dá a criação toda inteira a nossa disposição, dê-nos a tua graça para ajudarmos um ao outro na realização da concórdia no mundo. Abençoa-nos a nós e as obras de nossas mãos e faz-nos reconhecer em ti o sumo bem. Concede-nos a graça de estabelecer relações de amizade confiante e fraternidade solidária.

A tua benção atue em nós, Senhor Deus; faça-nos homens e mulheres novos no amor de Jesus Cristo; no toque do Espírito Santo dá-nos teus dons. Isto para sermos inteiramente disponíveis no serviço da vida e do bem comum. Amém.

Por intercessão de Nossa Senhora, Deus abençoe-nos sempre e em qualquer lugar, para que tudo concorra para o nosso bem e felicidade, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

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"Exorto-vos, pois... que leveis uma vida digna da vocação à qual fostes chamados". (Ef 4,1)